sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

BLUES, DE JOELHOS.

MARCELO NOVAES






Um dia, eu medi a extensão
que havia entre o passo e a
sombra fria, entre o corpo e
a alma, a distância entre a
fala e o coração. Não era
tanta, e eu refiz palavra
em poesia.




Um dia, eu encontrei alguém,
quando tentei falar o que não
sabia. E era canção. Guardei
a lágrima no sopro, azulei o
meu caminho, e quase me
senti outro. Afastei-me.




[Quem dera de mim
mesmo poder
apartar-me].



Compus um blues, prostrado,
de joelhos, um blues também
prostrado [defronte ao muro
azul escuro; das almas,
apartado].




Nesse dia chorei alguma coisa
que soou-me inteiramente nova
e fez, da antiga, equivocada. Tão
mais azul se tornou a vida: e mais
trincada.

PROTOPATERNIDADE

MARCELO NOVAES









Com quase cinquenta
remadas, eu restituí
o rio ao seu leito.



Amanheceu,
e eu aconteci.



Toquei a terra
e a voz que ela
emitiu foi
rugido.



Diante do juiz, diante do
mendigo, mantive-me;
permaneci.




Despedi-me,
porque sabia
me despedir;
e conhecia o
segredo das espirais
da respiração.




Transfigurei as faces
assustadas de meus
pais, na glória dos
filhos dos filhos
que não
tive.




E o que eu lhes dei,
não estava nos contornos,
nem nas dobras do olhar ,
nem no desenho sóbrio do
envelhecer,nem mesmo
na passagem
do tempo.




Não estava na neve,
nem na névoa,
não na jóia
de casamento,
nem na
solidão.




Não estava na chama
nem no fim da chama
nem no chamamento;
não estava nas dobras
do ir, ainda que
estivessem
indo...




Não estava na partida,
nem na chegada
de ninguém.




Nem no desanuviado onde não
se ouve voz,nem na canção-pra
-se-cantar-em-solo-sem-dono
-e-sem-choro.



Eu lhes dei presença
por permanecer de pé
sob a tarde-de-sempre.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A FRANJA DA AREIA

A FRANJA DA AREIA




MARCELO NOVAES








Do mar eu sabia o
sal.




Do mar eu sabia a
bruma, não sabia a
lama.




Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.




Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.





Desde que meu filho
pequeno aprendeu a falar,
eu lhe ensinei a responder
à pergunta: "Você me ama, ou
me tolera?!"Ele dizia que me to
-lerava, e sempre rimos disso. Até
que eu passei a não tolerar mais o
meu marido. E meu filho preferiu fi
-car com ele. Respeitei, sem rir, mas
ele ria em me ver de quinze em quinze
dias. E repetia, sem os erros de pronúncia:
"Mamãe, eu ainda te tolero demais. Muito."





Estava aborrecida. Resolvi tirar uma folga
de cinco dias, eu e mais duas amigas bem
casadas, com maridos liberais que não se
importavam que elas se divertissem sem
-pre.Fomos acampar na praia sozinhas as
três, fora de temporada. Choveu. Trovejou.
Relampeou. Saímos da barraca. Praia sem
mais ninguém. Um raio a cada dez segundos.






- Botijão de gás atrai raio!
-Estrutura metálica atrai raio!
-Água do mar atrai raio!
-Árvores também atraem!







Rezamos, as três, torrencialmente, como três
crentes que nunca fôramos, sob a tempestade.
E éramos três orando em línguas que não co
-nhecíamos, recitando mantras em sânscrito.
E eu sofria por antecipação a antevista advinhada
perda do meu filho, sofria meu filho perder de vista
a mãe, sofria vê-lo ter de se afastar do abrigo que
era eu mesma, sofria por imaginá-lo me vendo me
afastar por não mais amar meu marido, e meu choro era
de água salgada, era um choro ressentido, mas um choro
austero, no entanto, pra dentro, de quem esconde estar
morrendo de medo. Aquilo era a celebração de águas
antigas. Ninguém diria o que se passava para além
dos raios e da água que caíam. Era só isso. Mais nada.






Algo pairou sobre as águas.
E um halo de calor nos protegeu.
Algo pairou. Fez um vôo, mas não
como um pássaro, como um lenço
ondulando, como um lenço num vôo
ondulado, vai-e-volta, vai-e -volta,
como a prece do mar orando em nós
uma oração salgada.





Algo pairou sobre as nossas cabeças.
O corpo daquilo era de água, recoberto
por partículas de sal luminoso sal luminoso
sal e por gotas de água e sal a refletir o brilho
de nossa oração. E era de água e sal aquilo que
voava. Passou-nos o frio, enquanto víamos o
vôo daquele ser duzentos metros à frente de
nós, as três, inequivocamente, não era mira
-gem. Era, sim, feito à imagem da água do
mar. Feito à imagem do mar mais amplo, sem
sexo e com ambos os sexos, multiforme, pois
se o mar é água é também oceano. Pensei-o
masculino nem sei porque. Minhas amigas
se calaram. A tempestade se foi, e eu nem
dormi. A tempestade se foi e eu nem dormi.






No principiar da tarde,
enquanto as duas faziam o
almoço, cismei de mergulhar
no mar meu sono e meu cansaço.
Olhei bem, e atrás da oitava
onda havia um moço. De quem
seria a imagem, feita de água e
de céu?! Não haveria de ser
Narciso em mar
salgado.






E de dividir beleza, Narciso
era mais avaro que Apolo, e
este me chamava! Este me
queria! Por certo Narciso não
seria, nem o macho de sereia,
nem miragem mal assimilada.
Nem deus de areia e água e céu.
Por certo não era Narciso nem
Apolo. Por certo não haveria de
ser imagem de incesto, ou falta
de sono.






Como apalpar os músculos de um
corpo líquido? Como copular com
um molusco?! Não importava. Com
ânimo de peixe e olhos hesitantes, eu
fui até ele que, resplandescente, se
mostrava. Luz fulgurante, aura
alaranjada, transparente, voz
como muitas águas, bracelete
verde claro e tridente.






Nadei melhor do que
jamais nadara. Nada
fora tão claro em minha
natureza quanto amar o
mar agora...






Muito perto eu cheguei,
e já estava tão quente...






As amigas por mim já
esperavam.





Eu via a franja de areia
distante.





E nada mais me era mais
importante que o mar
exposto em rosto e
corpo fascinantes.






E eu quis tocar.






Cheguei. E o que eu quis
saber se fez repugnante.
Desfez-se a tez de um
jovem, e a força e o
brilho aparentes.






Senti seu toque mole
e pegajoso, semelhante ao
das ventosas e tentáculos de
um polvo, e não quis seu beijo
escurecido. Senti nojo.






A carne-de-água mole e inumana, - como
o encostar incômodo da água-viva, que queima
e traz náusea -, dois olhos dependurados em seis
pálpebras, corpo macilento, emaciado, cheiro de
bacalhau, cheiro de velho salpicado com polvilho
antisséptico granado, nas frieras, nas axilas, no
meio das nádegas. Feridas, fístulas e pústulas na
virilha. Pênis e esperma desfeitos em espuma e
alga. E, em mim, toda a aflição e asco.
Meu sonho refeito em pesadelo.






Que o mar leve meu
vômito até a areia,
porque nem sei mais
se sei nadar de volta.






Do mar eu sabia o
sal.





Do mar eu sabia a
bruma, não sabia a
lama.





Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.





Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.

MARCELO NOVAES

ONDE TE OLHA A NUCA


MARCELO NOVAES



Eu sou a tua companhia secreta,
desde a sombra das idades.
Eu sou o Poeta dos poetas.



Sou a resposta à tua invocação
por um pressuposto bom,
até então ausente.




Eu sou o pressuposto,
o olho onisciente antes
do teu rosto.



Afasto o que te ameaça
a partir de dentro, desde
que me saibas em teu
íntimo.




É só o que peço: que não restrinjas
o meu espaço e me consintas para
que caiba por entre as frestas do
teu desejo por tantas outras
coisas que não eu mesmo.




Eu sou o bem que, por enquanto,
só se vê de longe, ainda que venha
antes e anteceda toda a tragédia
que te constrange.




Eu sou o que vê por detrás de tua
face congelada, onde te olha a nuca,
quando te viras e não vês nada.