quarta-feira, 20 de maio de 2009

É DOCE MORRER NO MAR

PORQUE AO PUXÃO DAS ÁGUAS NÃO É MELHOR SE ENTREGAR?

NO MAIS, TUDO É SILÊNCIO.

TENHO A IMPRESSÃO QUE TUDO SE DESPEDE DE MIM.

FÚRIA, CONTRA A LUZ QUE MORRE.

É DOCE MORRER NO MAR.

QUANDO EU FOR EU VOU SEM PENA, PENA VAI TER QUEM FICAR.

segunda-feira, 2 de março de 2009

A FRANJA BRANCA DA LUZ

MARCELO NOVAES





A primeira água do pote
nasceu do ventre
da terra, e eu logo
percebi o que se
passara.




Rezei à Nossa Senhora do
Cobre, pedi a Ela um certo
amor seco opaco morno,
da espécie de zelo que
toca o pó.




Pedi-Lhe paz
para suportar
vazios, entrevendo o
frio, até que a verdadeira
escolha surgisse.




Nada de extra
-ordinário.



Suportar o
tédio, sem apelação
ou sub-terfúgio.




Entreguei o ar pesado
à própria gravidade,
rezei à gravidade,
considerei o barro
como matéria
-prima do
amor.




Procurei pela palavra
ainda não expressa, e
ela dormia em meu
plexo, como pirata
de um olho
só.




Com o outro olho
procurei por grãos de
turmalinas-virtudes
-negras, em meio às
ilusõesde antigas e
douradas glórias.




O ouro é o território
do enfado, e dos
infartados.




Vi o vôo de dezessete
pássaros em torno de
um único caniço de junco,
enquanto ouvia as vozes
dos antepassados, e de
todos os meus íntimos,
em volume baixo.




Compreendi a fantástica
esfera de lava e fogo que
mora na boca do
estômago.




Sentado, beijei minha própria
face machucada, dentro de minha
respiração: corpus et animus, molde
e fôlego, meu torrão de terra natal.




"Que meus hábitos não des
-figurem o sopro, nem o
barro".




Foi então que me vi
trançando, em-mim
-mesmo, cesta de vime
carregando memórias
de ventos e bisavós.




Ouvi o choro dentro
das costelas de todos
que esbravejaram
comigo, um dia.



Procurei pelo mistério
acobreado, o mistério do chão
roxo acobreado.



E levantando o rosto
com meu olho cego
de pirata, enfim,
divisei a franja
branca da
luz-prata.

A CABEÇA QUE CANTA EM TOWER HILL

MARCELO NOVAES




Há uma cabeça enterrada na colina
azul, que canta e bebe as águas da
tarde. Ela canta na colina da torre
cinza, no alto da qual pousam
andorinhas.










A cabeça enterrada em Tower Hill,
- na colina da torre, na torre da colina -
é a medida da desafinação de quem por
ali passa. A cabeça enterrada na colina
da torre cinza, bebe as águas da tarde
- cristalinas, vítreas -, e canta por amor
e ódio à vida. Pois foi decapitada.










A cabeça enterrada, que bebe as águas
da tarde, convoca um exército de cinco
mil soldados, para lhe fazer Justiça.
Antes que o sol se despeça.









E enquanto canta e convoca os cinco
mil, a cabeça enterrada na colina – longe,
bem longe da estrada – não desafina, e
reconta a história dos povoados em
torno, desde a pedra lascada.










A cabeça enterrada, antes da chegada da
noite, avança em sua empreitada, até a
chegada dos homens rudes pelo Canal
da Mancha. Com seus potes rústicos.
De cerâmica.










A cabeça enterrada, enquanto espera os
cinco mil soldados – com elmos, escudos
e lanças afiadas –, continua a sua saga,
descrevendo as peças funerárias,
decoradas, encontradas em
sepulturas, nas Ilhas
Bálticas.










A cabeça enterrada, que canta e aos céus
agrada – clamando por Justiça Santa, a
vingança abençoada desde a Antiga Aliança - ,
nomeia as portas de entrada para as câmaras
mortuárias de antigos reis e príncipes da Líbia,
Ibéria, Bretanha.










A cabeça que canta também tem memória.
E essa não é sua maior façanha. Ela se lembra
de um comércio intenso entre Romênia e Ucrânia,
pela área do Mar Negro. E faz o balanço das dívidas
e ganhos. A cabeça que canta também conta. Conta
que os dias os anos o Tempo, enfim, não passam de
uma Grande Roda de Prata. Trata-se, sem dúvida,
de uma cabeça celta na colina da torre enterrada.











Em Tower Hill, canta a cabeça, esperando
por uma justiça a ser feita, por engenho e obra
dos cinco mil soldados convocados por suas
invectivas contra os que a decapitaram. E ela
não perde tempo, e narra como a Idade do
Ferro entrou nas terras do Reno. E como
se desfizeram os reinos – como tapetes
desfeitos por fios puxados nos maus
remendos -, ao longo dos séculos.










A cabeça, liberta do corpo, não só clama
por Justiça – ágil e sanguinolenta -, como
ganha perspectiva. Por estar solta do tronco.










Os cinco mil estão chegando, tal e qual a invasão
belga à Irlanda. Olham, e da cabeça se apiedam.
Trazem colares com contas, azuis e brancas.
Olham bem para a cabeça. Não querem que
ela invoque o deus guerreiro, o Ímpio Deus
de Hebron. Mas a Mãe e o Filho.







Arrancam-lhe os olhos.
Tiram-lhe as presas.











Em Tower Hill, canta - um
canto manso e longo -, uma
cabeça cega...

MARCELO NOVAES

Voa voa, grão de sésamo





Para Elaine SiderlíSim. Foi agora que me chegou o fastio, pelos inúmeros flertes. Pelo calor e pelo frio. Não me interessa mais a voz da musa, nem sua canção lusco-fusca. Já a visão não me ofusca. Veio sem fim e sem começo. E, agora, o que sinto é só vergonha em mim mesmo. Quedo-me e repouso nesse labirinto. Importa-me achar o bom amigo. Importa-me descobrir o quanto disso é fogo fátuo. O que sobrar é fato. Cansei-me dos que refreiam os seus melhores passos. E das musas dos espaços. Fechados ou abertos. Lancei um buquê de flores miúdas aos céus. E fiz o ato em nome de Buda, cantando assim: “Não, não sou poeta. Sou o dançarino que atravessa o labirinto, segurando espelho, e não mais sorrindo”. Não, não sou comerciante de jóias. Não atravessei terra árida por nada, só a costumeira confusão dos homens. Sim, agrada-me estender-lhes a mão. Aos que me pedem flor e coragem. Não dinheiro, ou palavras fáceis. Sou o dançarino no labirinto, não um mercenário, atravessador, bandoleiro. Sou só o que toca o bandoneón, quando os outros dormem, de cócoras. De costas pro sol. Não tenho flauta, nem tenho fome de outras notas. Gosto de permanecer só. E há o lustre balançando na entrada de minha estrada longa. E foi só agora, há pouco, que me chegou o fastio dos ideais da hora outra. Era mais espessa, sonsa, tosca, a hora da canção lusco-fusca. Existem duas liberdade novas: a de dançar e não cantar canções velhas. Aquelas tolas de outrora. Quebrou-se a flauta quando soprou funda rajada. Fúnebre. Quando as palavras de cada um fizeram-se tornados. Giraram em falso. Tornaram-se grão de sésamo. Falta de suporte. Tombo no vazio. Eu sou o dançarino das flores miúdas jogadas aos céus. E só me interessam agora os hinos. E os passos da ancestral bailarina: a musa que não abriu a boca. Nem caiu. Com precisos ornamentos, usou brando colar e guirlanda, pisando chãos bárbaros. Soavam canções da Irlanda sem soar qualquer som. Só na sombra de seus movimentos. A ela canto, quando minha flor a Buda também jogo e lanço. Nesse momento, também sou cantor. Momento raro, quando escapo das dezoito servidões de ser mundano. Ou avaro. Depois, as enumero. O labirinto é extenso, e se não prossigo - no essencial do canto e do passo -, ao fim, eu nunca chego. Nem colho a derradeira flor de ser vitorioso. Em terra sem seta, sem placa, sem valor. Ouvi dizer, ali e além, de um lótus branco que nunca vi. Dele, talvez, pudesse me dizer alguém. Mas sigo a lâmpada que eu mesmo conheci, ali atrás, no primeiro vão da estrada. Na porta inaugural. A certa altura, sim, vi vulto. Algum de ardente inferno, clamando ter sede. E eu lhe dei um guizo, enquanto ajeitava os mecanismos de meu próprio cérebro, pra melhor decodificar pedidos. Ouvir júbilo, lamento ou grito. Distinguindo cada um de cada outro. Voa, voa, grão de sésamo. Voa, voa cada palavra ao vento. Os vultos, agora, fazem silêncio. Estão de luto. São raras as orações puras. São poucas as tochas acesas nos ramos das árvores altas. São mínimas as novas palavras, ou velhas em novas contas enfileiradas. Quase tudo é fogo fátuo e musa morta. São muitas as sementes queimadas. E as liberdades extremas costumam ser falsas, grotescas, trôpegas. Como o andar das emas. Nenhuma riqueza é perfeita. E, no leite, costuma haver nata. Na vida, tudo é nada. Fora o que se deixa como aroma, dependendo do jeito que se passa. Às vezes, o tempo anda ao contrário. Às vezes, larga o leme do barco, o timoneiro. Às vezes, queremos dividir méritos com os que já se foram: quatro, oito, quinhentos. Então, rezamos. Dobramos os joelhos, nesse labirinto, segurando espelho. Voa, voa, grão de sésamo! Voa ,voa, cada palavra ao vento! Importa-me achar o bom amigo. Que me recite o Sutra ao pé do ouvido. E que, no método, seja assíduo. Voa voa, grão de sésamo, até o fim dos tempos! O que se acumula, no fim, se dispersa. Há sete destruições pelo fogo, vinte e sete pela água, e oitocentas pelas más palavras. Mesmo o universo se desintegra. E se acrisola, num palácio, em Dimensão Quarta. A morte é certa. E não tarda. São ocos os troncos das bananeiras, como são os corpos longos das flautas. De metal ou madeira. E demora o vento o tempo de levar - pra ali pra além pra fora - o grão de sésamo. Voa voa! A flecha voa sem a menor pausa e, por fim, descansa. A torrente desce a encosta. Voa voa, vento, e leva leve a minha glosa! Que seja, para o ouvido, precioso brinco ou mero ornamento... Ouça o que lhe digo: quem mora na terceira margem se chama condenado! Até que a pele se lhe despregue dos ossos... O que habita a margem terceira ouve a razão do vento. Vê, e só se comove com as outras duas. Não a sua, a do meio, porque feita à sua imagem. Voa voa, grão de sésamo, acompanhando a minha loa! Caminho sobre o chão, ou sobre o espelho, segundo o dia, a hora, a estação. Mas guardo - de memória - a voz da tocha que me cantou um dia: “segue e vai embora!”. Seguir pra onde?! Agora, sobre tudo a sombra desce. Ficam as dobras. Meu olho não mais se incomoda com as mudanças. Ele é íntimo do espelho. Reconhece, longe longe, o grão que voa, e adivinha sua origem e pouso. Pouso e origem. Linhas negras demarcam a construção do labirinto. Engenho feito por nós mesmos, inábeis arquitetos: casa de urros, prantos e bebês famintos. Voa voa, grão de sésamo, até o lugar onde tudo é findo. Onde não há doença ou roubo. Eu sigo o meu passeio mais lento, mais longo, pisando em ovos, mirando-me no espelho. Para conhecer meus olhos. Procurando neles atos e átomos que se perderam. E os Atos dos Apóstolos. As ações e seus frutos. Um grão, que seja, de efeito positivo. Ou causa. O grão de mérito. Sei que causa estrondo o trovão. Na canção, causa temor a pausa. E todo passo é preciso. E precioso, quando se sabe o ritmo. Todo ele é rito. Ritual de auspicioso voto. Potencial de encontro com o grão de sésamo, lá no fim, caído...

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

BLUES, DE JOELHOS.

MARCELO NOVAES






Um dia, eu medi a extensão
que havia entre o passo e a
sombra fria, entre o corpo e
a alma, a distância entre a
fala e o coração. Não era
tanta, e eu refiz palavra
em poesia.




Um dia, eu encontrei alguém,
quando tentei falar o que não
sabia. E era canção. Guardei
a lágrima no sopro, azulei o
meu caminho, e quase me
senti outro. Afastei-me.




[Quem dera de mim
mesmo poder
apartar-me].



Compus um blues, prostrado,
de joelhos, um blues também
prostrado [defronte ao muro
azul escuro; das almas,
apartado].




Nesse dia chorei alguma coisa
que soou-me inteiramente nova
e fez, da antiga, equivocada. Tão
mais azul se tornou a vida: e mais
trincada.

PROTOPATERNIDADE

MARCELO NOVAES









Com quase cinquenta
remadas, eu restituí
o rio ao seu leito.



Amanheceu,
e eu aconteci.



Toquei a terra
e a voz que ela
emitiu foi
rugido.



Diante do juiz, diante do
mendigo, mantive-me;
permaneci.




Despedi-me,
porque sabia
me despedir;
e conhecia o
segredo das espirais
da respiração.




Transfigurei as faces
assustadas de meus
pais, na glória dos
filhos dos filhos
que não
tive.




E o que eu lhes dei,
não estava nos contornos,
nem nas dobras do olhar ,
nem no desenho sóbrio do
envelhecer,nem mesmo
na passagem
do tempo.




Não estava na neve,
nem na névoa,
não na jóia
de casamento,
nem na
solidão.




Não estava na chama
nem no fim da chama
nem no chamamento;
não estava nas dobras
do ir, ainda que
estivessem
indo...




Não estava na partida,
nem na chegada
de ninguém.




Nem no desanuviado onde não
se ouve voz,nem na canção-pra
-se-cantar-em-solo-sem-dono
-e-sem-choro.



Eu lhes dei presença
por permanecer de pé
sob a tarde-de-sempre.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A FRANJA DA AREIA

A FRANJA DA AREIA




MARCELO NOVAES








Do mar eu sabia o
sal.




Do mar eu sabia a
bruma, não sabia a
lama.




Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.




Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.





Desde que meu filho
pequeno aprendeu a falar,
eu lhe ensinei a responder
à pergunta: "Você me ama, ou
me tolera?!"Ele dizia que me to
-lerava, e sempre rimos disso. Até
que eu passei a não tolerar mais o
meu marido. E meu filho preferiu fi
-car com ele. Respeitei, sem rir, mas
ele ria em me ver de quinze em quinze
dias. E repetia, sem os erros de pronúncia:
"Mamãe, eu ainda te tolero demais. Muito."





Estava aborrecida. Resolvi tirar uma folga
de cinco dias, eu e mais duas amigas bem
casadas, com maridos liberais que não se
importavam que elas se divertissem sem
-pre.Fomos acampar na praia sozinhas as
três, fora de temporada. Choveu. Trovejou.
Relampeou. Saímos da barraca. Praia sem
mais ninguém. Um raio a cada dez segundos.






- Botijão de gás atrai raio!
-Estrutura metálica atrai raio!
-Água do mar atrai raio!
-Árvores também atraem!







Rezamos, as três, torrencialmente, como três
crentes que nunca fôramos, sob a tempestade.
E éramos três orando em línguas que não co
-nhecíamos, recitando mantras em sânscrito.
E eu sofria por antecipação a antevista advinhada
perda do meu filho, sofria meu filho perder de vista
a mãe, sofria vê-lo ter de se afastar do abrigo que
era eu mesma, sofria por imaginá-lo me vendo me
afastar por não mais amar meu marido, e meu choro era
de água salgada, era um choro ressentido, mas um choro
austero, no entanto, pra dentro, de quem esconde estar
morrendo de medo. Aquilo era a celebração de águas
antigas. Ninguém diria o que se passava para além
dos raios e da água que caíam. Era só isso. Mais nada.






Algo pairou sobre as águas.
E um halo de calor nos protegeu.
Algo pairou. Fez um vôo, mas não
como um pássaro, como um lenço
ondulando, como um lenço num vôo
ondulado, vai-e-volta, vai-e -volta,
como a prece do mar orando em nós
uma oração salgada.





Algo pairou sobre as nossas cabeças.
O corpo daquilo era de água, recoberto
por partículas de sal luminoso sal luminoso
sal e por gotas de água e sal a refletir o brilho
de nossa oração. E era de água e sal aquilo que
voava. Passou-nos o frio, enquanto víamos o
vôo daquele ser duzentos metros à frente de
nós, as três, inequivocamente, não era mira
-gem. Era, sim, feito à imagem da água do
mar. Feito à imagem do mar mais amplo, sem
sexo e com ambos os sexos, multiforme, pois
se o mar é água é também oceano. Pensei-o
masculino nem sei porque. Minhas amigas
se calaram. A tempestade se foi, e eu nem
dormi. A tempestade se foi e eu nem dormi.






No principiar da tarde,
enquanto as duas faziam o
almoço, cismei de mergulhar
no mar meu sono e meu cansaço.
Olhei bem, e atrás da oitava
onda havia um moço. De quem
seria a imagem, feita de água e
de céu?! Não haveria de ser
Narciso em mar
salgado.






E de dividir beleza, Narciso
era mais avaro que Apolo, e
este me chamava! Este me
queria! Por certo Narciso não
seria, nem o macho de sereia,
nem miragem mal assimilada.
Nem deus de areia e água e céu.
Por certo não era Narciso nem
Apolo. Por certo não haveria de
ser imagem de incesto, ou falta
de sono.






Como apalpar os músculos de um
corpo líquido? Como copular com
um molusco?! Não importava. Com
ânimo de peixe e olhos hesitantes, eu
fui até ele que, resplandescente, se
mostrava. Luz fulgurante, aura
alaranjada, transparente, voz
como muitas águas, bracelete
verde claro e tridente.






Nadei melhor do que
jamais nadara. Nada
fora tão claro em minha
natureza quanto amar o
mar agora...






Muito perto eu cheguei,
e já estava tão quente...






As amigas por mim já
esperavam.





Eu via a franja de areia
distante.





E nada mais me era mais
importante que o mar
exposto em rosto e
corpo fascinantes.






E eu quis tocar.






Cheguei. E o que eu quis
saber se fez repugnante.
Desfez-se a tez de um
jovem, e a força e o
brilho aparentes.






Senti seu toque mole
e pegajoso, semelhante ao
das ventosas e tentáculos de
um polvo, e não quis seu beijo
escurecido. Senti nojo.






A carne-de-água mole e inumana, - como
o encostar incômodo da água-viva, que queima
e traz náusea -, dois olhos dependurados em seis
pálpebras, corpo macilento, emaciado, cheiro de
bacalhau, cheiro de velho salpicado com polvilho
antisséptico granado, nas frieras, nas axilas, no
meio das nádegas. Feridas, fístulas e pústulas na
virilha. Pênis e esperma desfeitos em espuma e
alga. E, em mim, toda a aflição e asco.
Meu sonho refeito em pesadelo.






Que o mar leve meu
vômito até a areia,
porque nem sei mais
se sei nadar de volta.






Do mar eu sabia o
sal.





Do mar eu sabia a
bruma, não sabia a
lama.





Eu não conhecia o
pântano dentro do
mar.





Do mar eu conhecia
escamas, não a
ganga.