segunda-feira, 2 de março de 2009

MARCELO NOVAES

Voa voa, grão de sésamo





Para Elaine SiderlíSim. Foi agora que me chegou o fastio, pelos inúmeros flertes. Pelo calor e pelo frio. Não me interessa mais a voz da musa, nem sua canção lusco-fusca. Já a visão não me ofusca. Veio sem fim e sem começo. E, agora, o que sinto é só vergonha em mim mesmo. Quedo-me e repouso nesse labirinto. Importa-me achar o bom amigo. Importa-me descobrir o quanto disso é fogo fátuo. O que sobrar é fato. Cansei-me dos que refreiam os seus melhores passos. E das musas dos espaços. Fechados ou abertos. Lancei um buquê de flores miúdas aos céus. E fiz o ato em nome de Buda, cantando assim: “Não, não sou poeta. Sou o dançarino que atravessa o labirinto, segurando espelho, e não mais sorrindo”. Não, não sou comerciante de jóias. Não atravessei terra árida por nada, só a costumeira confusão dos homens. Sim, agrada-me estender-lhes a mão. Aos que me pedem flor e coragem. Não dinheiro, ou palavras fáceis. Sou o dançarino no labirinto, não um mercenário, atravessador, bandoleiro. Sou só o que toca o bandoneón, quando os outros dormem, de cócoras. De costas pro sol. Não tenho flauta, nem tenho fome de outras notas. Gosto de permanecer só. E há o lustre balançando na entrada de minha estrada longa. E foi só agora, há pouco, que me chegou o fastio dos ideais da hora outra. Era mais espessa, sonsa, tosca, a hora da canção lusco-fusca. Existem duas liberdade novas: a de dançar e não cantar canções velhas. Aquelas tolas de outrora. Quebrou-se a flauta quando soprou funda rajada. Fúnebre. Quando as palavras de cada um fizeram-se tornados. Giraram em falso. Tornaram-se grão de sésamo. Falta de suporte. Tombo no vazio. Eu sou o dançarino das flores miúdas jogadas aos céus. E só me interessam agora os hinos. E os passos da ancestral bailarina: a musa que não abriu a boca. Nem caiu. Com precisos ornamentos, usou brando colar e guirlanda, pisando chãos bárbaros. Soavam canções da Irlanda sem soar qualquer som. Só na sombra de seus movimentos. A ela canto, quando minha flor a Buda também jogo e lanço. Nesse momento, também sou cantor. Momento raro, quando escapo das dezoito servidões de ser mundano. Ou avaro. Depois, as enumero. O labirinto é extenso, e se não prossigo - no essencial do canto e do passo -, ao fim, eu nunca chego. Nem colho a derradeira flor de ser vitorioso. Em terra sem seta, sem placa, sem valor. Ouvi dizer, ali e além, de um lótus branco que nunca vi. Dele, talvez, pudesse me dizer alguém. Mas sigo a lâmpada que eu mesmo conheci, ali atrás, no primeiro vão da estrada. Na porta inaugural. A certa altura, sim, vi vulto. Algum de ardente inferno, clamando ter sede. E eu lhe dei um guizo, enquanto ajeitava os mecanismos de meu próprio cérebro, pra melhor decodificar pedidos. Ouvir júbilo, lamento ou grito. Distinguindo cada um de cada outro. Voa, voa, grão de sésamo. Voa, voa cada palavra ao vento. Os vultos, agora, fazem silêncio. Estão de luto. São raras as orações puras. São poucas as tochas acesas nos ramos das árvores altas. São mínimas as novas palavras, ou velhas em novas contas enfileiradas. Quase tudo é fogo fátuo e musa morta. São muitas as sementes queimadas. E as liberdades extremas costumam ser falsas, grotescas, trôpegas. Como o andar das emas. Nenhuma riqueza é perfeita. E, no leite, costuma haver nata. Na vida, tudo é nada. Fora o que se deixa como aroma, dependendo do jeito que se passa. Às vezes, o tempo anda ao contrário. Às vezes, larga o leme do barco, o timoneiro. Às vezes, queremos dividir méritos com os que já se foram: quatro, oito, quinhentos. Então, rezamos. Dobramos os joelhos, nesse labirinto, segurando espelho. Voa, voa, grão de sésamo! Voa ,voa, cada palavra ao vento! Importa-me achar o bom amigo. Que me recite o Sutra ao pé do ouvido. E que, no método, seja assíduo. Voa voa, grão de sésamo, até o fim dos tempos! O que se acumula, no fim, se dispersa. Há sete destruições pelo fogo, vinte e sete pela água, e oitocentas pelas más palavras. Mesmo o universo se desintegra. E se acrisola, num palácio, em Dimensão Quarta. A morte é certa. E não tarda. São ocos os troncos das bananeiras, como são os corpos longos das flautas. De metal ou madeira. E demora o vento o tempo de levar - pra ali pra além pra fora - o grão de sésamo. Voa voa! A flecha voa sem a menor pausa e, por fim, descansa. A torrente desce a encosta. Voa voa, vento, e leva leve a minha glosa! Que seja, para o ouvido, precioso brinco ou mero ornamento... Ouça o que lhe digo: quem mora na terceira margem se chama condenado! Até que a pele se lhe despregue dos ossos... O que habita a margem terceira ouve a razão do vento. Vê, e só se comove com as outras duas. Não a sua, a do meio, porque feita à sua imagem. Voa voa, grão de sésamo, acompanhando a minha loa! Caminho sobre o chão, ou sobre o espelho, segundo o dia, a hora, a estação. Mas guardo - de memória - a voz da tocha que me cantou um dia: “segue e vai embora!”. Seguir pra onde?! Agora, sobre tudo a sombra desce. Ficam as dobras. Meu olho não mais se incomoda com as mudanças. Ele é íntimo do espelho. Reconhece, longe longe, o grão que voa, e adivinha sua origem e pouso. Pouso e origem. Linhas negras demarcam a construção do labirinto. Engenho feito por nós mesmos, inábeis arquitetos: casa de urros, prantos e bebês famintos. Voa voa, grão de sésamo, até o lugar onde tudo é findo. Onde não há doença ou roubo. Eu sigo o meu passeio mais lento, mais longo, pisando em ovos, mirando-me no espelho. Para conhecer meus olhos. Procurando neles atos e átomos que se perderam. E os Atos dos Apóstolos. As ações e seus frutos. Um grão, que seja, de efeito positivo. Ou causa. O grão de mérito. Sei que causa estrondo o trovão. Na canção, causa temor a pausa. E todo passo é preciso. E precioso, quando se sabe o ritmo. Todo ele é rito. Ritual de auspicioso voto. Potencial de encontro com o grão de sésamo, lá no fim, caído...

Nenhum comentário:

Postar um comentário